António Saiote: “A arte em Portugal só é conhecida quando está ao serviço do poder”

De que forma viver e estudar em França influenciou a sua carreira?
Estudar em França influenciou todo o meu futuro. Tendo partido aos 18 anos, encontrava-me suficientemente verde e fresco para assimilar tudo o que me fosse transmitido. Tive então a possibilidade de estudar com dois dos maiores mestres do clarinete de todos os tempos, Guy Depluis e Jacques Lancelot. Por 10 francos assistia todas as semanas aos concertos da Orquestra de Paris, no Palais des Congrès. E porque vivi na cidade universitária (Cité Universitaire de Paris), que na altura era frequentada por alguns dos mais competentes cidadãos dos vários países, abria a perspectiva de um conhecimento global e profundo sobre várias matérias.

Apaixonou-se de imediato pelo clarinete? Como tudo começou?
A paixão do clarinete surgiu após o meu ingresso numa banda. Com três anos de idade já cantava em público, e, portanto a paixão pela musica já cá estava. Ao entrar para a banda de Loures, pela mão do meu pai, comecei a aprender música e teoria. Normalmente, nas bandas, os mais aptos iam para o clarinete, e assim fui. Além disso, tanto o meu avô como o meu pai tinham ambos sido clarinetistas.

Com que compositor mais se identifica?
É uma pergunta difícil de responder. Fico sempre impressionado com Machaut, Palestrine, Monteverdi, Bach, Beethoven, Mozart, Stravinsky, Debussy. No meu caso, é como ter vários filhos e me perguntarem de qual gosto mais. A minha paixão pela música é ilimitada em todas as suas formas.

Esteve mais de uma década ao lado de Jorge Peixinho no Grupo de Música Contemporânea de Lisboa. Como foi esta vivência em conjunto?
A primeira palavra que me vem à cabeça é indescritível. Entrei aos 17 anos e estava a tocar com alguns dos melhores músicos da cena musical portuguesa da altura. O elemento mais novo tinha mais 20 anos do que eu. Para além de toda a experiência artística, social e humana, guardo sempre a melhor memória do Jorge Peixinho por tudo o que me ensinou. Com ele fiz a minha primeira improvisação, a primeira aula de história da música e a primeira aula de estética. Jorge Peixinho era uma personalidade que era incapaz de falar de algo que não tivesse a ver com politica ou com arte. Aliás, para ele, arte e política no sentido mais nobre, eram indissociaveis. Foi um enriquecimento fabuloso a todos os níveis.

E como foi com Guy Deplus e Jacques Lancelot, seus professores em Paris?
Com Guy Deplus e Jacques Lancelot aprendi quase tudo o que havia a aprender sobre clarinete. Ainda hoje considero Guy Deplus o maior pedagogo de clarinete, e Jacques Lancelot o melhor clarinetista.

Durante o seu percurso musical cruzou-se com grandes nomes do panorama musical internacional. Com quem gostou mais de trabalhar? De quem nunca se esqueceu?
Houve alguns que me marcaram mais do que outros. Por exemplo, Edita Gruberova, Ricardo Mutti, Sergio Celibidache, Olga Pratts, Jorge Peixinho e Georges Hurst.

O que acha do escasso número de obras editadas, publicadas e comercializadas em Portugal nos últimos anos?
Acho que reflecte o país em que vivemos, e a atitude dos vários governantes em relação à musica em particular, e à arte em geral. Hoje, como há 40 anos, só em Portugal um músico é sinónimo de fora-da-realidade, lírico, flibusteiro, etc. De Espanha para a frente, músico é um artista.

Qual o seu compositor português de eleição?
Joly Braga Santos, sem hesitações, embora com alguma parcialidade. A sua última obra foi dedicada a mim e à Olga Prats. Mas trata-se, muito provavelmente, do maior sinfonista europeu do séc. XX.

E a obra?
Paraísos Artificiais, de Luís de Freitas Branco, que tive a oportunidade de dirigir no início do séc. XXI no CCB, com a terrível 3ª variação incluída.

Portugal é um país culturalmente activo?
Os artistas portugueses são particularmente resistentes. Portugal nunca foi culturalmente activo. Basta lembrar que é sempre dominado por Lisboa, e todas as elites fazem o caminho da capital a do império, onde se decidem os gostos, os subsídios, e as prebendas.

Como os seus homólogos da zona euro?
Acabam de me dizer na Universidade de Brasília que a crise teve um lado positivo: finalmente Portugal pode perceber que a Europa está de costas voltadas para ele. Pode finalmente assumir a sua vocação atlântica, num espaço enorme, que vai de um espaço político ibero-americano, passando pelo espaço cultural latino-americano e terminando na comunidade lusófona. Nenhum país europeu pode preencher estes 3 requisitos ao mesmo tempo.

É fácil exportar a música portuguesa no estrangeiro? Igualmente para os seus intérpretes?
Grande parte dos intérpretes conhecidos no estrangeiro, não é por acaso, residem no estrangeiro, inclusive, sobretudo hoje em dia que se criou a ideia que só quem vive no estrangeiro é que são vencedores. Para dar um exemplo, pouca gente me conhece nos centros de decisão, no entanto, tenho em média uma viagem por mês ao estrangeiro. É preciso igualmente sublinhar que há uma série de interpretes que são conhecidos, que são apoiados pelo poder central e pelos media, mas que só são conhecidos no país. E por fim, existe uma minoria na qual me incluo, que não entram nos joguinhos de poder. Não me faltam convites para o estrangeiro, o que por alguma razão, o poder central não reconhece, talvez porque a arte em Portugal só é conhecida quando está ao serviço do poder.

Acha que os artistas portugueses, especialmente os músicos eruditos têm o devido suporte e promoção junto da comunidade portuguesa no estrangeiro, da parte das entidades governamentais portuguesas?
De maneira nenhuma. Que eu saiba, todo o apoio da Secretaria de Estado das Comunidades é canalizado para a música popular, folcrórica, pimba, e tudo o que não seja erudito.

Quais são os seus próximos projectos?
Continuar vivo.
Esperar que alguém no estrangeiro repare na enorme qualidade da Orquestra da Esmae, porque pelo que disse atrás, o poder central e local vai continuar a ignorar a realidade. É impossível num país como Portugal, uma escola como o Politécnico, num país dominado pelas universidades, ainda por cima no Porto, haver uma orquestra que muito provavelmente está nas 10 melhores do mundo no seu nível etário. Continuar o meu trabalho de pedagogo e de solista, por todo o mundo, e honrando Beethoven, que não referenciei atrás, “contribuir através da arte para elevar os homens, porque a arte só se completa na sua dimensão humanística”.


Tem um suporte on-line onde os leitores possam acompanhar a sua carreira?
WebSite: www.saiote.com

Youtube: www.youtube.com/user/davidsaiote


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